Vinte e quatro desfiles/apresentações, 17 criadores e marcas de vestuário, seis marcas de calçado e sete projetos de jovens designers. Estes foram os números do 47.º Portugal Fashion. Números de resistência e esperança. Resistência face aos efeitos sanitários, económicos e sociais da pandemia de covid-19. Esperança porque, apesar das dificuldades e restrições impostas pela crise pandémica, os três dias de desfiles foram uma prova de vitalidade criativa e comercial da moda portuguesa. Tudo isto numa edição em que se assinalou os 25 anos do Portugal Fashion, uma longevidade que é, também ela, um misto de tenacidade e sonho.
Foi um Portugal Fashion adaptado às exigências da crise sanitária aquele que teve lugar entre 15 e 17 de outubro. Em horário maioritariamente diurno, limitação de público, desfiles ao ar livre, transmissões online, intervenções multimédia e plano de contingência foram estas as principais medidas para evitar a propagação do novo coronavírus durante esta 47.ª edição. “A pandemia motivou uma reinvenção profunda do evento, traduzida em novos modelos de organização dos desfiles, novas formas de comunicação das criações e novos modos de interação com o público”, explicou a diretora do Portugal Fashion, Mónica Neto.
“Esta edição realizou-se num contexto muito difícil para a economia portuguesa, o que reforça as nossas responsabilidades enquanto evento de referência na capacitação e promoção da fileira moda. O Portugal Fashion tem o dever acrescido de apoiar e dar esperança a criadores e marcas, que estão, como noutros sectores de atividade, a ser fortemente penalizados pelo impacto socioeconómico da pandemia. Hoje, talvez como nunca nestes 25 anos de Portugal Fashion, é nossa obrigação proteger o talento nacional. E não me parece que haja melhor maneira do que esta de assinalar o nosso 25.º aniversário”, considerou Mónica Neto.
O mote deste 47.º Portugal Fashion foi, justamente, “25 Years Protecting Talent”. E talento é algo que não faltou no programa de desfiles primavera/verão 2021. Depois da sua última edição, em março, ter sido interrompida devido ao agravamento da situação epidémica, o Portugal Fashion regressou com um calendário onde pontuaram muitos criadores consagrados (Alexandra Moura, Alves/Gonçalves, David Catalán, Hugo Costa, Júlio Torcato, Luís Onofre, Maria Gambina, Miguel Vieira, Sophia Kah, Katty Xiomara…), marcas credenciadas (Concreto, Sanjo, Fly London…), jovens designers do Bloom e duas duplas criativas, a Ernest W. Baker (em estreia no evento) e a Marques’Almeida.
Sophia Kah inaugurou Portugal Fashion
O centro nevrálgico do evento voltou a ser a Alfândega do Porto, tirando partido não apenas da dimensão e versatilidade das suas salas mas também da aprazibilidade dos seus espaços exteriores (como a área junto ao cais e até o parque de estacionamento). O calendário desta 47.ª edição teve ainda desfiles off location, como acontece na abertura do evento, em que o pátio exterior do Neya Porto Hotel – com o claustro ajardinado do antigo Convento de Monchique – serviu de cenário à apresentação da última coleção da marca Sophia Kah.
Depois da elegância e sensualidade das propostas de Sophia Kah – marca que nasceu em Londres, em 2011, pelas mãos da designer portuguesa Ana Teixeira de Sousa –, o evento prosseguiu na Alfândega do Porto com o primeiro desfile Bloom e a apresentação das propostas de David Catalán. O designer de moda riojano radicado no Porto participou, em setembro, na Semana da Moda de Milão, com o apoio do Portugal Fashion, e trouxe à Alfândega uma coleção inspirada no imaginário dos safaris africanos, mas com referências ao universo da moda masculina clássica.
Os detalhes utilitários surgiram em diferentes tipos de peças: camisas clássicas, calças, coletes e agasalhos. Uma combinação que favoreceu a mistura de estilos, verificando-se um mix de peças clássicas com propostas mais casuais. Avultaram as cores quentes, os apontamentos gráficos com inspiração botânica, as abordagens macro em diferentes técnicas e os prints multicoloridos, sobretudo nas peças denim. Ficou assim expressa uma nova linguagem no universo jeanswear da marca. Nos materiais, destaque para os algodões com toque de papel e os tecidos técnicos leves, que dão conforto às peças. Outro aspeto a realçarforam os tingimentos tie-dye. A silhueta é confortável e descontraída, transmitindo um look urbano e contemporâneo.
A meio da tarde, teve lugar a apresentação sempre muito aguardada de Katty Xiomara. A designer preparou para esta edição uma apresentação vídeo da coleção intitulada “Alma”, com a qual passou a mensagem de que “as ligações pessoais importam e as ligações criativas nos enriquecem”. As formas nas novas propostas de Katty Xiomara são flutuantes e simples e, à semelhança de coleções anteriores, a criadora utilizou matérias-primas exclusivamente nacionais com objetivos sustentáveis. De resto, há novamente a aplicação dos conceitos de eco design nesta coleção. As peças assumiram tons neutros, sendo o preto e o branco os grandes pontos de contraste e equilíbrio. Já os cinzentos tonificados por verdes e malvas recriaram uma ideia de aura. Por último, uma pontuação de vermelho e rosa batom introduziu energia e feminilidade.
Estreia da Ernest W. Baker
Após o desfile de Estelita Mendonça, designer que já habituou o público do Portugal Fashion a propostas arrojadas e desafiantes, estreiou-se no evento a Ernest W. Baker – marca de menswear sob a qual se revela o talento dos jovens designers Reid Baker e Inês Amorim. A marca é uma homenagem ao avô homónimo de Reid, que foi um dos primeiros publicitários de Detroit, e combina o pragmatismo do american way of life com a elegância e o classicismo europeus, num choque de culturas que sublima o melhor dos dois mundos.
A Ernest W. Baker integrou, em julho último, o calendário oficial da Semana da Moda de Paris e está à venda em Itália, Canadá, Japão, Hong Kong, China e Coreia do Sul e em plataformas online, como a Farfetch. Refira-se que Reidi e Inês trabalharam juntos para os designers Haider Ackermann, Yang Li e Wooyoungmi e, em 2018, a dupla ficou entre os 20 semifinalistas dos prémios LVMH (grupo francês que inclui a Louis Vuitton, a Celine e a Christian Dior).
A coleção que a marca apresentou em formato vídeo no Portugal Fashion foi inspirada na história familiar dos dois criadores, ideia que nasceu durante o confinamento social motivado pela pandemia, em particular após o visionamento de filmes do avô, do pai e da infância de Reid. “Os paralelos entre os muito antigos, inspiração recorrente no nosso trabalho, e os muito jovens que neles vimos, tornaram-se o ponto de partida da nossa coleção primavera-verão 2021”, explicam. Por isso, os fatos e gabardines fazem alusão à infância e assumem um look marcadamente vintage, remetendo para o imaginário dos anos 60/70 do século passado. Os tons são suaves e as formas por vezes sobredimensionadas.
O segundo dia do 47.º Portugal Fashion arrancou com Susana Bettencourt, num formato inovador de Editorial no Portugal Fashion, que durou o dia inteiro, iniciando no Neya Porto Hotel mas, desta feita, na antiga igreja do convento. Este renovado espaço acolheu a apresentação da criadora ao longo do dia com transmissão vídeo. A ideia foi apresentar a coleção simulando um editorial de moda, com os manequins em pose a serem continuamente fotografados. Este inovador formato permitiu mostrar ao público a dinâmica dos bastidores, que por norma não tem visibilidade pública, e, ao mesmo tempo, deu à designer todo o material promocional de que necessidade para lançar comercialmente a coleção.
Seguiu-se Inês Torcato, uma antiga bloomer que tem vindo a ganhar reconhecimento no circuito da moda, sendo apontada como uma das designers mais talentosas da sua geração. Está-lhe nos genes, talvez, pois é filha de Júlio Torcato. Ou então esteve muito atenta às aulas de Maria Gambina, que foi sua professora na ESAD Matosinhos. De resto, foi precisamente Maria Gambina quem sucedeu a Inês Torcato na passerelle do 47.º Portugal Fashion, provando que o evento cruza, de facto, várias gerações de criadores.
Para a estação quente de 2021, Maria Gambina propôs “uma coleção feminina em silhueta space age, num ambiente afro-americano da década de 60”. Abundaram os “detalhes que nos remetem para a infância, como bordados em favos de mel, franzidos por elásticos, rendas e folhos jabô em camadas”. Estes elementos “polvilham as peças numa atitude delicada em contraste com o grafismo sport da coleção”. Os materiais são sustentáveis e contemporâneos, sendo de realçar a aplicação, nas malhas, de acabamentos técnicos em membranas de proteção antibacteriana, que se apresentam em finas peliculas transparentes ou em amarelo fluorescente. O branco predominou na coleção, mas com apontamentos de azul royal e amarelo fluorescente.
O calendário prosseguiu com a criadora Pé de Chumbo que, na sua nova coleção, apostou no reaproveitamento de peças, dando-lhe novas formas e texturas com um propósito estético mas também de sustentabilidade. A seguir teve lugar a primeira de duas apresentações de marcas de calçado e acessórios, neste caso com as coleções da Belcinto, da MLV Portuguese Shoes e da Fly London.
O segundo dia de Portugal Fashion terminou com apresentação vídeo de Miguel Vieira, um dos mais credenciados e internacionais designers de moda portugueses. Na Sala dos Despachantes a performance com manequins acompanhou o lançamento de três cocktails em parceria com o Vogue Café Porto, com cores e aromas inspirados na coleção do criador. Foi também exibido um vídeo com a participação de Miguel Vieira na Semana da Moda de Milão, em setembro último, com o apoio do Portugal Fashion.
Miguel Vieira apresentou a coleção “Introspeção”, que, segundo o criador, “busca inspiração em homens focados no que acreditam verdadeiramente e são livres para vestir aquilo que reflete e, simultaneamente, molda a sua personalidade. Homens que, quando consomem moda, preferem consistência e qualidade”. A paleta cromática integra o bege, o castanho biscoito, o rosa orquídea e o azul Capri, enquanto nos materiais avultam os tecidos estampados, as sedas, as lãs frias (100% e super 110), o algodão mercerizado e os tecidos metalizados. Sobressaíram, nos detalhes, os estampados desenvolvidos em atelier e o forro personalizado. Constatou-se o contraste entre silhueta esguia e geométrica e silhueta clássica, com linhas puras e estilizadas e a alfaiataria estruturada.
Manifesto M’A pela sustentabilidade
No sábado, em desfile off location e logo pela manhã, as M’A girls deram a conhecer a nova coleção da dupla radicada em Londres, Marta Marques e Paulo Almeida, que em setembro regressou à London Fashion Week com o apoio do Portugal Fashion. A nova coleção de streetwear da Marques’Almeida assumiu-se como um manifesto pela sustentabilidade, sem perder as habituais referências punk e grungy da dupla combinadas com elementos, padrões e formas reminiscentes da cultura portuguesa.
“Quem és tu?”, “O que é importante para ti?” foram as questões levantadas neste manifesto pela responsabilidade social e ambiental. O Manifesto M’A pretendeu “levar a sério a vulnerabilidade e a fragilidade de cada um” para posteriormente “apoiar, nutrir, honrar e empoderar” toda uma comunidade. Acima de tudo, a dupla assume-se como um “motor de mudança”, por forma a “fazer a diferença consciente no universo da moda”.
Apesar da participação de Alexandra Moura nesta edição ter sido através de uma vídeo-instalação permanentemente aberta ao público na entrada da Alfândega, foi no sábado, pelas 12h30, que simbolicamente se assinalou a presença da criadora no 47.º Portugal Fashion. Na instalação em formato de cubo foi projetado um vídeo com a última participação da criadora na Semana da Moda de Milão, em setembro, onde apresentou a coleção “Substrato”, que resultou da revisitação de desenhos, prints, tecidos, padrões e conceitos anteriormente explorados por Alexandra Moura.
“Extraímos assim o que caracteriza a marca, o que é a marca”, diz a criadora. Na coleção assistimos à “desconstrução dos clássicos”, o delicado romântico evolui tornando-se mais underground, os tecidos são manipulados e os volumes, os laços soltos e as tiras sobressaem enquanto elementos identitários da marca. De tudo isto nasceu um padrão clássico e conceptual, em que a estética urbana e desportiva ajudaram a criar constantes opostos, trazendo informalidade à coleção.
O evento prosseguiu com Júlio Torcato que, com performance de Francisco Barros, texto de João Mendes e sonoplastia de André NO, apresentou “um manifesto em formato de sátira político-social onde uma personagem discursa sobre a manipulação e a falta de análise que fazemos àquilo que ouvimos”. A seguir chegou o sempre arrojado desfile de menswear de Hugo Costa, um criador que se deu a conhecer no Bloom e é hoje presença regular na Semana da Moda de Paris. Depois, a marca Concreto, uma referência da indústria têxtil e de vestuário portuguesa pela qualidade das suas criações em tricot para mulher, revelou as suas propostas para a estação quente do próximo ano.
Logo após o Concurso Bloom powered by Sonae Fashion, Luís Onofre apresentou a coleção “Freedom”, inspirada nas “asas de um pássaro colorido a cruzar o céu” ou na “intensidade luxuriante das florestas tropicais” – “representações perfeitas de uma harmonia que só encontramos na natureza”. “Num apelo à latitude dos espaços abertos, (…) surgem formas, materiais e cores que transformam cada sapato numa homenagem à Mãe Natureza”, explicou o criador a propósito da nova coleção da sua marca homónima.
Amarelo, azul, morango, bege ou caqui geram efeitos cromáticos sempre amplificados pelo dourado. Penas, folhagens e entrançados étnicos são recriados para adornar a coleção, e as sandálias e chinelos sucedem-se em diversas alturas e formatos. Atilhos, biqueiras retangulares, efeitos rendados e bordados assumem grande preponderância numa coleção onde as camurças, as peles e os cetins são os materiais base. A ráfia ganhou um protagonismo inesperado em solas e coberturas, enquanto os cristais Swarovski em múltiplas combinações intensificaram a habitual elegância da marca. Nos modelos mais desportivos, os componentes foram trabalhados para reforçar o efeito ultraleve, tornando os ténis da marca ainda mais confortáveis.
O calçado e os acessórios voltaram a estar em destaque na última das duas apresentações coletivas dedicadas ao sector. ESC, Rufel e Sanjo foram, desta feita, as marcas a quem cabou demonstrar que Portugal tem do melhor calçado e marroquinaria do mundo.
O 47.º Portugal Fashion terminaou em grande com o desfile da dupla Alves/Gonçalves, que, na sua nova coleção, fundiram elementos étnicos com novas tecnologias visando a sustentabilidade. Para a primavera-verão 2021, os Manéis criaram “um ambiente vertiginoso, otimista e experimental para um futuro próximo”. Trata-se de uma coleção eclética e urbana, que revisita vestuário cujas memórias se somam a novas estéticas. O streetwear da dupla apresenta formas amplas e silhuetas longas não convencionais, em que feminino se associa ao masculino. Em suma, “um vestuário de várias interpretações para uma nova era pós-covid, que antevê um futuro positivo e enérgico”.
Parcerias estratégicas
O Portugal Fashion é um projeto da responsabilidade da ANJE – Associação Nacional de Jovens Empresários, que conta com o apoio dos seus parceiros estratégicos e é cofinanciado pelo Portugal 2020, no âmbito do Compete 2020 – Programa Operacional da Competitividade e Internacionalização, com fundos provenientes da União Europeia, através do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional.
O Portugal Fashion e a Câmara Municipal do Porto assinaram um protocolo que define o apoio institucional da autarquia ao evento. Apoio, esse, que confere ao Portugal Fashion recursos acrescidos para reforçar a sua posição no ecossistema de moda nacional e internacional e, desta forma, fortalecer as dinâmicas da cidade/região enquanto hub de inovação, empreendedorismo, manufatura, criatividade e cultura. Pretende-se, com esta cooperação estratégica, dinamizar a componente comercial do Portugal Fashion, no quadro de uma cidade/região historicamente ligada às indústrias transformadoras nacionais, nomeadamente dos sectores do têxtil, vestuário e calçado.
A mesma lógica de promoção do desenvolvimento e da internacionalização da indústria portuguesa preside às parcerias estratégicas do Portugal Fashion com as associações empresariais da fileira moda, como a ATP – Associação Têxtil e Vestuário de Portugal, a APICCAPS – Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos e a AORP – Associação de Ourivesaria e Relojoaria de Portugal. Estas parcerias permitem ao Portugal Fashion abarcar todos os sectores da fileira moda e criar sinergias entre eles, de forma a reforçar a dimensão internacional, a capacidade de diferenciação e o potencial competitivo de empresa e produtos portugueses.